terça-feira, 11 de maio de 2010 17:36 Postado por Micah Sanders Wade 2 comentários
Dezembro de 2002

O dia de recrutar os garotos no reformatório havia chegado e depois de quase uma hora explicando o projeto a dois deles, eles estavam dispostos a participar. Seus nomes eram Michael Sullivan e Walter Ferguson, de 15 anos. Ambos tinham um extenso histórico de fugas e semanas de penitencia na solitária, mas a perspectiva de passar algumas horas longe daquela prisão parecia ter sido o maior incentivo para a cooperação. Faltava apenas um garoto, o mais complicado dos três. Thomas Marcano, um descendente de italiano sem pai nem mãe, campeão de fugas de Sunny Vale e conhecido por estar sempre desafiando os guardas e começando as brigas entre os detentos.

Aquele garoto tinha tudo para não colaborar, mas era quem eu mais queria no projeto. O guarda me autorizou a falar a sós com ele e me levou até a cela da solitária onde ele estava confinado, depois de ter aberto um corte enorme na cabeça de um garoto com a bandeja do almoço. Quando entrei no cubículo tão familiar, o garoto estava deitado no chão, os pés apoiados na parede e sequer se moveu para olhar quem tinha entrado. Tive que me esforçar para não rir, pois me reconheci de imediato.

Se for outro assistente tentando me fazer entrar pro grupo idiota de terapia, pode ir embora que já disse que não estou interessado – Thomas disse sem desviar os olhos da parede suja.
- Não sou assistente social e não entendo nada de terapia de grupo. Sou auror.
- Ah, o tal auror que quer nos ensinar boas maneiras – ele falou com deboche e o guarda reagiu incomodado, mas fiz sinal de que estava tudo bem – Não estou interessado também.
- Não queremos ensinar boas maneiras a ninguém, você já tão gentil, não precisa disso.
- Auror com senso de humor, gostei – ele me encarou pela primeira vez, mas ainda tinha uma expressão desinteressada – Mesmo assim, não, obrigado.
- Você se acha um valentão, não é? – disse no mesmo tom de deboche dele – Fica aqui na solitária, resistindo, e a cada vez que volta ganha mais respeito dos outros garotos. Sei como é sentir esse poder.
- Ah qual é, agora vai querer bancar o que acha que sabe como é viver aqui? Esse papo não cola, porque vocês não sabem de nada.
- É ai que você se engana. Já estive exatamente onde você está, deitado num chão como esse, cheio de atitude, fingindo que não estava nem ai pra nada, mas a verdade era que tudo que mais queria era sair sem precisar fugir e não ter que voltar mais. Fui amparado por pessoas que se importavam comigo quando sai e nunca mais voltei.
- Bom, é aí que vemos a diferença. Eu não tenho quem me ampare, estou preso nesse buraco até completar 18 anos.
- Então por que não levanta a bunda desse chão e vem conosco? Se conseguir se sair bem no projeto, não precisará ficar aqui até os 18 anos. Vai sair tendo para onde ir, e uma vaga garantida na Academia. Mas se prefere passar mais 3 anos aqui embaixo...

Virei de costas e já fazia menção de sair quando Thomas levantou, batendo a sujeira da roupa. Olhei para ele outra vez e ele me encarou de cima a baixo, ainda desconfiado, depois lançou um olhar para o guarda que o observava atento e estendeu a mão.

- Ok auror, o que tenho que fazer pra sair daqui?

ººººº

- Ei Mike, vigilância constante!

Um raio azul cortou a sala e ricocheteou na parede quando Mike Sullivan abaixou a tempo de desviar do feitiço lançado por Thomas. Shannon cruzou a sala invocada e tomou a varinha de sua mão, lhe lançando um olhar de censura. Thomas apenas riu e deu de ombros, enquanto Walter ria vendo Mike no chão.

- Outra gracinha dessas e vai ser o único a continuar com a varinha confiscada, Tommy – avisei me juntando a ela no centro da sala – Isso aqui não é brincadeira. Se não forem levar o programa a sério, tem um monte de outros garotos que querem estar aqui no lugar de vocês.
- Não, vamos levar a sério! – Walter se alarmou e deu um soco no braço de Thomas – Ele não vai mais fazer isso.
- Ótimo. Vocês lembram as condições para continuar, não é? – Rachel perguntou – Suas notas terão que melhorar, uma abaixo de A e estão cortados. E também sem mais brigas. Se passassem menos tempo envolvidos em confusões no refeitório, teriam mais tempo para estudar.
- Estudar é um saco – Mike parou ao lado de Walter ajeitando os cabelos. Ele era menor que os outros dois e mais franzino, mas não menos encrenqueiro – É uma perda de tempo. Somos bruxos, podemos ter o que quisermos nas mãos.
- Ah é isso que você acha mesmo? – Eric o agarrou pela camisa e os outros dois se assustaram. Mike o encarou e confirmou – Vem até aqui.

Eric arrastou Mike até o corredor e o seguimos, até que pararam em frente a um enorme quadro que ficava no hall de entrada. Era um mosaico dos maiores aurores do mundo bruxo e suas conquistas. Ele ia apontando para os nomes dos aurores e perguntando quem eram e, curiosamente, Mike soube responder todos. Eric então começou a apontar os nomes dos bruxos das trevas capturados por aqueles aurores e ele não reconheceu nenhum nome, exceto Voldemort.

- Sabe por que você não reconhece nenhum desses nomes? – Mike não respondeu – Porque eles não são ninguém! Eram como você, pensavam que tinham o mundo nas mãos por serem bruxos. E agora estão todos mortos.
- Ok, chega – me aproximei e afastei Mike de Eric, vendo o garoto começar a se assustar de verdade – Já entendeu a mensagem, não é? – e ele assentiu, sem tirar os olhos arregalados de Eric – Vamos voltar pra sala.

Os três nos seguiram de volta pelo corredor e passaram o resto da aula do dia sem dizer quase nada. Acho que Eric tinha conseguido o que queria.

ººººº

Março de 2003

O começo do programa foi difícil, éramos quatro futuros aurores tentando dominar três adolescentes rebeldes e sem medo de nada nem ninguém, mas com o passar do tempo os garotos foram entrando na linha. Foram muitos gritos, estresses, punições e vez ou outra brigas violentas entre eles, mas agora os três já nos obedeciam sem que precisássemos apartá-los das brigas com um feitiço. Dos três, Mike era o mais esforçado. Por ser o mais franzino, estava sempre tentando superar os colegas. E era também o que mais esperava ter um lugar para onde ir que não fosse sua própria casa, não queria voltar para as mãos dos pais viciados.

O treinamento era básico, mas estava funcionando. Eles tinham um programa de treinamento físico quase militar, que servia para ensiná-los disciplina, e aula de duelos todos os dias. Dávamos a eles a oportunidade de praticar os feitiços que aprendiam nas aulas, mas que eram apenas teóricas, e ensinávamos alguns outros. E duas vezes por semana eles tinham aulas básicas das matérias da Academia, como rastreamento, vigilância e esconderijo. Hoje seria o dia da nossa segunda avaliação do desempenho deles, na primeira todos conseguiram elevar as notas para A, mas não passavam disso. Quando chegamos à sala os três já estavam lá, debruçados em cima da mesa, tão concentrados que sequer nos ouviram. Shannon me cutucou com um sorriso no rosto, apontando o que estava prendendo a concentração deles: livros de magia.

- Ei meninos, o que estão lendo? – Rachel perguntou sentando ao lado de Walter.
- Esse feitiço do patrono... – Walter falou apontando a ilustração no livro – Vamos aprender? Vocês vão nos ensinar, não é?
- É, podemos pensar no caso de vocês, se mostrarem que merecem – Eric falou e na mesma hora Mike saltou do banco com uma pasta na mão, me entregando.
- Podem começar a nos ensinar – ele disse presunçoso e abri a pasta. Eram os relatórios de notas dos três, e não havia nenhuma abaixo de EE.
- É isso ai, seus pivetes – Eric estendeu a mão e os três bateram – Acho que isso pede um feitiço Patrono. Vamos pro tatame!
- O feitiço não é nenhum bicho de sete cabeças, é apenas um feitiço que requer concentração para ser executado – Shannon começou a explicar e os três apertavam as varinhas nas mãos, ansiosos – Para conjurar um Patrono, vocês precisam ter em mente uma lembrança feliz.
- Um Patrono é um tipo de energia positiva, uma projeção do que o dementador se alimenta: esperança, felicidade ou desejo de sobrevivência. E por ser apenas uma projeção, o dementador não pode tirar isso dele, por isso não pode afetá-lo – expliquei quando eles não pareciam entender o motivo de precisarem de uma lembrança feliz – Por isso o feitiço não funciona a menos que você esteja concentrando todas as suas forças em uma lembrança feliz.
- Vamos praticar primeiro, então mantenham as varinhas pata baixo e repitam comigo – Rachel ordenou e eles obedeceram – Expecto Patronum!

Rachel fez os garotos repetirem o encantamento durante muito tempo, até que todos os três estivessem usando a pronuncia correta, mas antes de deixar que tentassem executá-lo, pediu que gastassem alguns minutos procurando pela lembrança feliz que os ajudaria. Usando legilimência pude ver Mike concentrado em uma festa de aniversário com ele ainda pequeno, abraçado a uma senhora que pelas feições só poderia ser sua avó. Walt sorria, mentalizando a imagem de um parque, com sua versão de aproximadamente 10 anos brincando de futebol americano com um homem ruivo igual a ele, seu pai. Ambos pareciam ter escolhido sua memória, mas não conseguia ver nada na mente de Tommy. Era impossível que ele soubesse oclumência, mas antes que pudesse forçar alguma coisa, Shannon os trouxe de volta a realidade, autorizando que começassem a praticar o feitiço.

- Isso Walter! – Shannon o incentivou com entusiasmo ao ver uma luz prateada se iluminar na ponta de sua varinha – Está quase lá, se concentre mais e vai conseguir!
- Boa, Wally! Está quase tomando forma! – Mike acabou se desconcentrando ao ver que a luz prateada de Walt formava uma fumaça borrada e a sua se apagou – Ah, droga. Desculpe, me animei demais. Expecto Patronum!
- Ai! – ouvi Tommy gritar de dor e soltar a varinha no chão, levando a mão ao pulso imediatamente – Acho que torci o pulso.
- Venha até aqui, vou dar uma olhada – e Rachel o guiou para fora do tatame.

Continuei monitorando Walter e Mike, que progrediam lentamente, mas sem tirar os olhos de Tommy. Rachel analisou seu pulso e parecia não ter encontrado nada, mas ele dizia que estava doendo e não voltou para o exercício. Deixei que apenas observasse por quase meia hora, até que fui até ele.

- Machucou o pulso, então? – perguntei vendo-o apertá-lo com uma força exagerada. Ele fez que sim com a cabeça, sem me encarar – Por que não diz qual é o problema de verdade? Mentindo não posso ajudar.
- Não posso conjurar um patrono – ele disse em voz baixa, depois de algum tempo em silêncio.
- Como não? Claro que pode, é só se concentrar e se dedicar que vai conseguir. Você é ótimo com feitiços, Tommy.
- Mas eu não tenho nenhuma lembrança feliz! – ele explodiu de repente, mas a agitação na sala não fez ninguém ouvi-lo. Ele diminuiu a voz outra vez – Não posso conjurar um patrono porque não tenho nada feliz em que me concentrar.
- Você não se lembra de nada da sua infância que possa ajudar? Mike está usando uma lembrança de quando tinha menos de 6 anos.
- Hum, deixe-me ver o que posso usar... – Tommy fez uma cara debochada, como se estivesse se esforçando para lembrar as coisas – Até meus 5 anos todas as minhas lembranças são de estar sozinho em casa, enquanto meus pais trabalhavam fora ou sei lá o que faziam o dia todo na rua. Depois que eles desapareceram, morei nas ruas e tentava sobreviver todo dia, então não, acho que não vou conseguir usar nada.
- O que aconteceu com seus pais?
- Eles me deixavam sozinho todos os dias, trabalhavam fora, eu acho – ele deu de ombros – Às vezes esqueciam de deixar comida, mas sempre voltavam. Só que um dia não voltaram mais. Não sei se morreram ou foram embora e me deixaram pra trás, mas lembro que fiquei aliviado no dia que não voltaram, sabia que poderia sair pra procurar o que comer sem ser punido depois.
- Sinto muito por isso, mas se quiser, podemos tentar localizar seus pais. Se você é bruxo, é muito provável que eles também sejam e assim fica mais fácil.
- Obrigado, mas não – me espantei e ele me encarou firme – Se você localizá-los e me disser que estão mortos, vai doer. Mas se encontrá-los e disser que estão vivos, vai doer ainda mais.
- Entendi. Mas não quero que desista de praticar o feitiço, porque você não está mais sozinho no mundo, tem a todos nós e daqui pra frente terá muitas lembranças felizes. Tenha um pouco de paciência e vai ver que dará certo. Promete que não vai desistir? – ele assentiu com a cabeça e sorriu – Então levanta desse banco e vá se juntar aos seus amigos.

Tommy girou a varinha entre os dedos como costumava fazer e se juntou aos outros dois no tatame. Ele se esforçou durante um bom tempo, até que de repente uma luz prateada saiu da ponta de sua varinha, ainda que fraca. Ele logo se animou e passou a se empenhar ainda mais, enquanto eu me concentrava em ver o que ele estava vendo. E a imagem que vi em sua memória não poderia ter me dado mais certeza de que estávamos fazendo a coisa certa: Tommy tinha em mente exatamente aquele momento, em que estava cercado por pessoas que gostavam dele e queriam seu bem. Agora mais do que nunca sabia que aquele era um caminho que eu queria continuar seguindo.

sexta-feira, 2 de abril de 2010 19:36 Postado por Micah Sanders Wade 3 comentários
Nova York, Novembro de 2002.

Estávamos assistindo a nossa última aula teórica de Vigilância e Rastreamento antes do feriado de Ação de Graças e estava tão focado em chegar em casa e arrumar as malas para viajar para Boston que não conseguia prestar atenção. Um ano já havia se passado desde que descobri que tinha outra família e as coisas estavam bem diferentes.

Pelo menos uma vez por mês eu aparatava na casa dos meus avós, para passar o fim de semana, e Michael e Andrea sempre levavam Connor até lá para passar o maior tempo possível com os tantos primos que ganhamos. Ele já estava muito bem enturmado com Boston, Byron e Casey, que tinham idades próximas.

Não demorou muito para descobrir que minha família inteira era fascinada por esportes e nós passamos por uma verdadeira lavagem cerebral, até que finalmente eles conseguiram converter Connor e eu a dois fãs fiéis dos Boston Red Sox e New England Patriots, mas tiveram zero sucesso em nos fazer torcer pelos Celtics. Ninguém substitui os Lakers e agora sempre que tem jogo dos dois times, a casa vira um campo de batalha.

Era o segundo feriado de Ação de Graças que passaríamos lá, e dessa vez além de Evie, Michael, Andrea e Wes, também se juntariam a mesa Shannon, Dario e Georgia. Estava ansioso para chegar lá e rever todo mundo e quando ouvi o sinal tocar fui o primeiro a levantar, mas a voz grave do professor me chamou a atenção e parei com a mochila a meio caminho do ombro.

‘Não saiam ainda, tenho um aviso importante’ E todos sentaram sem contestar ‘Como todos estão cientes, esse é o ano da formatura. Aqui na Academia de Aurores de NY, para se formar, os alunos precisam fazer um trabalho, que chamamos de Projeto de Conclusão de Curso’ Ele saiu de trás da mesa e circulou pelas carteiras, distribuindo um guia de bolso ‘O objetivo do trabalho é mostrar os benefícios que a Academia pode trazer. Nesse guia vocês encontrarão todas as regras do projeto, o que podem e não podem fazer, e mais importante, o que devem e o que não devem fazer. Vocês devem se dividir em grupos de 3 ou 4 pessoas, e devem fazer o acompanhamento do projeto comigo. A apresentação deverá ser em Maio. Bom feriado para todos e boa sorte’

‘Vamos fazer juntos, certo?’ Eric perguntou enquanto saiamos da sala junto com o resto da turma e Shannon, Rachel e eu assentimos ‘Ótimo, então vamos tentar pensar em algo durante o feriado e segunda-feira a gente se reúne pra ver se alguma idéia pode ser aproveitada. Bom feriado pra vocês’

Eric se despediu e desapatarou, seguido por Rachel, ambos iam para a casa de seus pais. Voltei com Shannon às pressas para casa e já estávamos todos nos esperando de mochilas prontas. Era mais um dia de Ação de Graças na casa dos Walker.

ºººººº

O feriado não poderia ter sido melhor, mas passou rápido demais. Quando comecei a relaxar, me vi de volta a Nova York sem nenhuma idéia para o projeto da Academia. Fui para a aula com Shannon na segunda-feira tentando pensar em alguma coisa no caminho, mas sem sucesso. Eric e Rachel já estavam no refeitório tomando café quando chegamos e pelas expressões ansiosas, tinham algo sobre o projeto para apresentar.

‘Desculpa gente, mas não consegui pensar em nada, me distrai demais’ Já me desculpei enquanto sentava à mesa com eles.

‘Pela cara da Shan, ela também não pensou em nada’ Eric falou rindo ‘Somos três então’

‘Bom, para a sorte de vocês, minha família não é nada divertida e tive bastante tempo livre para pensar no projeto’ Rachel tirou uma pasta da mochila e jogou em cima da mesa ‘Não pensei em um nome ainda, mas a idéia é a seguinte: nós vamos rastrear adolescentes bruxos em reformatórios, que não tenham uma educação mágica como deveriam ter, e dar isso a eles aqui, na Academia’

‘Como exatamente faríamos isso?’ Perguntei interessado ‘Seriam só os problemáticos?’

‘A idéia é focarmos os mais problemáticos, os que julgam “caso perdido”, e reverter isso’ Rachel explicou tirando um papel de dentro da pasta e nos entregando ‘Já foi comprovado que atividades esportivas incentivam as crianças a sair das ruas e crescer na vida, então tudo que temos que fazer é provar que a Academia de Aurores pode fazer o mesmo’

‘Sabe que isso pode dar certo?’ Shannon leu rápido o papel que tinha na mão e sorriu animada ‘Quantas crianças e adolescentes bruxos devem ter espalhados por ai, em orfanatos, sem ter idéia do que realmente são?’

‘Bom, eu adorei a idéia e por mim, fazemos isso mesmo’ Eric apoiou e assentimos de imediato ‘Fechado então, vamos botar esse projeto em pratica!’

ºººººº

Depois de uma semana, onde definimos metas para o projeto, organizarmos todas as idéias e apresentamos ao nosso coordenador, recebemos sinal verde para dar continuidade a ele e começamos nossa busca por uma assistente social que pudesse ajudar na parte onde teríamos que conseguir uma autorização para trabalhar dentro de um reformatório, com adolescentes problemáticos.

A busca foi mais fácil do que pensávamos. Demos a sorte de encontrarmos Sandra, uma aluna do ultimo período de Assistência Social da NYU precisando desesperadamente de alguém que a ajudasse em um projeto complicado de localização de crianças bruxas perdidas em orfanatos trouxas, para dar a elas um lar apropriado. Ela nos contou do projeto temendo nossa reação a menção de bruxos, mas ficou aliviada ao ver que tinha contado para as pessoas certas. Unimos forças e enquanto ela nos ajudaria nas negociações com o reformatório, nós a ajudaríamos a identificar as crianças e achar famílias para elas.

Havíamos escolhido o reformatório bruxo Sunnyvale para trabalhar. Foi preciso uma conversa demorada com o diretor, sempre com a ajuda de Sandra, mas ele nos autorizou a fazer uma experiência com apenas 3 garotos. Se em duas semanas o programa desse resultado, ele nos autorizaria a trabalhar com quantas quiséssemos. Não era uma tarefa fácil, selecionar apenas 3 adolescentes dentre as centenas que moravam no reformatório, e isso estava tirando meu sono. Precisávamos entregar os nomes no dia seguinte e continuava sentado no chão do quarto, com fichas espalhadas ao meu redor, sem ter chegado a uma conclusão.

‘Micah?’ Evie acordou quando derrubei umas das pastas e fez barulho ‘Por que ainda está acordado? São 2 da manhã’

‘Preciso escolher 3 garotos e não consigo me decidir, não consigo dormir’

‘Escolha qualquer um, faz diferença?’ Ela bocejou e deitou outra vez ‘Só venha dormir logo e apague esse abajur’

‘Claro que faz diferença! Não posso simplesmente sortear um, esses garotos precisam de ajuda e não posso brincar com coisa seria!’ Me exaltei um pouco, mas logo me arrependi ‘Desculpe, estou cansado, mas já vou dormir’

‘O que aconteceu?’ Ela levantou outra vez, e seu tom de voz era de quando não ia desistir enquanto eu não falasse ‘Desde que começaram a trabalhar nesse projeto, você está estranho. Por que é tão importante escolher os garotos certos?’

‘Você não entende o que esses garotos e garotas passam lá... Se eles não tiverem uma válvula de escape, algo melhor com que contar, quando completarem a maioridade e saírem...’

‘Me explique então, se eu não entendo. O que eles passam lá? Como sabe tanto sobre isso?’ Ela fez sinal para me sentar ao lado dela na cama e deixei as pastas de lado, indo até ela.

‘Eu sei o que acontece porque já estive em um reformatório’ Falei de cabeça baixa e mesmo sem estar olhando pro seu rosto, sabia que ela tinha reagido espantada, pois imediatamente passou a mão em meu pescoço ‘Foi logo depois que minha avó morreu’

‘Por que você foi mandado pra um reformatório? Você já não estudava na escola de magia quando ela morreu?’

‘Sim, mas eu não reagi muito bem quando soube da morte dela, causei alguns problemas quando soube que seria mandado para um orfanato com Connor’ Continuava de cabeça baixa enquanto falava ‘Não aceitava a morte dela, me rebelei contra o único tio ainda vivo porque ele não quis nos acolher e fiz muita besteira’

‘Que tipo de problemas você pode ter causado sozinho, para te mandarem pra lá?’ Ela perguntou já sabendo parte da resposta.

‘Não estava sozinho, Josh ficou do meu lado o tempo todo, ajudando nos estragos. O mais leve foram algumas pichações no muro do Ministério da Magia da Califórnia, mas foi a gota d’água, pois fomos presos por isso’ Ri um pouco, mas mais de nervoso do que de divertimento ‘Josh, como sempre, escapou da punição, mas eu não tinha mais quem me defendesse e fui mandado para um reformatório bruxo, Coyote Falls. Aquele lugar era uma prisão, horrível. Passei um ano lá, e foi o pior ano da minha vida’

‘O que acontece lá?’ Evie agora segurava minhas mãos ‘O que fizeram com você?’

‘Tudo de ruim que você possa imaginar, não ficávamos um único dia sem levar um surra dos guardas. Se você não dá um motivo, eles arrumam um. Tinha um professor que ensinava feitiços, que nos fazia esticar os braços para ele bater com uma regra de madeira pesada. A marca não saia por dias’ Olhei para ela pela primeira vez desde que comecei a falar ‘O que fazem com as pessoas nesses lugares é desumano. Até onde sei, esses garotos podem sair de lá para serem os próximos Voldemortes, motivos não lhe faltam. Precisamos dar a eles outro motivo pelo qual agüentar o tempo que precisam ficar lá. Elas precisam saber que não existe só o caminho que é ensinado na base da força lá dentro, aqui fora. Eu tive a sorte de sair de lá e ter amigos com quem contar, mas a maioria não tem ninguém’

‘Por que você nunca contou que já esteve num lugar como esse?’

‘Não é um assunto que gosto de trazer a tona’ Forcei um sorriso e ela me beijou, encostando a cabeça em meu ombro ‘Não se preocupe, nunca sofri nenhum tipo de abuso, além de surras mesmo. Continuo virgem nesse aspecto, e vou morrer assim’

‘Não tem graça’

‘Preciso rir dessas coisas, meu amor. Humor foi o que me fez sobreviver a isso tudo, é minha válvula de escape’ Beijei ela outra vez e levantei da cama ‘Preciso escolher os garotos certos, o programa precisa dar resultado’

‘Bom, então me deixe ajudar, duas cabeças pensam melhor que uma’ Ela levantou da cama e estendi a mão.

Passamos a madrugada em claro, lendo e relendo as fichas que foram entregues a mim, e o dia já começava a clarear quando finalmente tínhamos decidido por três garotos para darmos inicio ao trabalho. Os três tinham 15 anos, nenhuma família a quem recorrer, e eram constantemente enviados para a solitária por tentarem fugir. Eram os garotos perfeitos para trabalhar, pois eu tinha certeza que obteríamos os resultados esperados. O que eu pudesse fazer para ajudar esses garotos, eu faria.

Depois que Norma foi embora e contei aos outros o que tinha acabado de acontecer, saímos para comemorar o aniversário de Georgia como planejado, mas minha cabeça já estava em outro planeta. Não conseguia pensar em mais nada. O picnic que eles montaram no meio do Central Park durou a tarde toda e ouvia as risadas escandalosas de Dario se sobressaindo às vozes já altas de Georgia, Shannon e Evie, que emendavam uma bobagem na outra, mas não conseguia participar da brincadeira.

‘Você está bem?’ Evie passou a mão na minha nuca, embolando os dedos nos meus cabelos.

‘Só um pouco distraído’ Puxei sua mão para frente e a beijei ‘Desculpe não estar conseguindo aproveitar o dia com vocês’

‘Tudo bem, hoje você tem o direito de estar aéreo’ Ela sorriu pra mim do jeito que eu adorava ‘No que está pensando?’

‘Ah, é o famoso “e se”. Sempre volto a ele’

‘Você tem uma família que passou quatro anos procurando por você. Não os faça pagar por algo que não têm culpa. O que Emily fez a você e Connor não é culpa de mais ninguém’ Evie me olhava com firmeza, mas depois sorriu carinhosa e afagou meu rosto ‘Você sempre disse que queria uma família grande, pode começar agora. Dê essa chance a si mesmo. Ligue pra ela. Está estampado em seu rosto que quer conhecê-los’

‘Sou tão transparente assim?’ Admiti e ela riu.

‘Não, mas eu conheço você melhor do que pensa. E você não está sozinho, vou ficar ao seu lado o tempo todo’

Concordei com a cabeça sem dizer nada e Evie se aproximou mais para me abraçar. Puxei o cartão que Norma havia deixado do bolso e o encarei por um tempo, antes de puxar o celular do bolso e discar o número impresso no papel.

‘Alô, Norma?’ Disse quando ela atendeu ‘Sou eu, Micah’


ºººººº


Em uma conversa rápida por telefone, concordei em acompanhar Norma para um Brunch na manhã de domingo. Evie estava disposta a me acompanhar se eu quisesse, mas depois de pensar por um tempo achei melhor ir sozinho. Ela já estava me esperando na frente do restaurante quando cheguei e um sorriso radiante se espalhou por seu rosto quando me viu. Minhas mãos suavam frio enquanto me aproximava e nos guiavam até nossa mesa. Não conseguia me lembrar da última vez que me vi tão nervoso assim.

‘Fiquei muito feliz quando você ligou’ Ela quebrou o silêncio quando sentamos à mesa.

‘Desculpe pelo modo como agi ontem, dizendo que nunca deixei de ter família’ Comecei a falar ‘Acho que fui um pouco grosseiro’

‘Não precisa se desculpar. Sei que você tem uma família, quis apenas dizer que você tem mais uma família, não apenas eles’

‘Eu entendi isso depois, é que foi meio que um choque’ Disse mais relaxado ‘Esse assunto é um pouco delicado pra mim, mas estou disposto a conversar’

‘E eu estou aqui para responder a todas as perguntas que tiver, mas antes gostaria de fazer uma’ Assenti com a cabeça e ela continuou ‘Emily disse que teve dois filhos, mas nunca conseguimos encontrar nada sobre o outro. Ela mentiu?’

‘Não, eu tenho um irmão de 9 anos, Connor, mas ninguém pode encontrá-lo a menos que eu diga onde ele está’ Expliquei e ela pareceu se assustar um pouco, então tentei amenizar ‘Ele só tinha 4 anos quando nossa avó morreu e passou por três lares adotivos antes de ficar com Michael e Andrea, não queria que ele se magoasse com mais nada, então nosso pai, que é do FBI, cuidou para que ele se mantivesse sempre seguro e um pouco fora do radar’

‘Para que Emily e Ryan não o encontrassem, caso um dia tentassem?’ Ela perguntou e achei mais seguro mentir, então confirmei. Não podia entrar no assunto Reis & Sombras ‘Entendo, foi para o bem dele’

‘Não vou impedi-la de conhecê-lo, mas gostaria de conhecer todos antes de contar a ele. E quero fazer isso pessoalmente, então vou precisar viajar, ele não mora mais nos Estados Unidos’

‘Isso significa que quer conhecer sua outra família?’ Um sorriso iluminou seu rosto no mesmo instante e foi impossível não sorrir de volta ‘Ah Micah, você acaba de tirar um peso do meu coração’

‘Quantos vocês são?’ Agora já estava mais a vontade e menos nervoso.

‘Ah, a família Walkers é grande. Liam, seu avô, e eu tivemos quatro filhos e cada um deles teve dois filhos, e nessa contagem estou incluindo Emily, você e seu irmão. Eu sou trouxa, como vocês dizem, mas seu avô é bruxo. Ele era um auror, mas agora já está aposentado, graças a Deus!’ Ela parecia realmente aliviada e ri ‘A mais velha é Emily, então nossa segunda filha é sua tia Lauren. Ela é arquiteta e casada com um advogado, Kurt Moretz, e eles têm duas filhas. A mais velha é Heather, de 15 anos, e por enquanto a única dos netos a já estudar magia. Ela estuda em Hogwarts, é da Lufa-Lufa. A menor é Casey, de 9 anos. Nenhum de nossos filhos jamais apresentou sinais de magia, apenas os netos. Segundo Liam, os dois mais velhos depois de Heather já apresentaram sinais de que são bruxos, mas os outros ainda são muito novos’

‘Pode acontecer de pular uma geração, mas atingir a seguinte por inteiro’

‘É o que seu avô diz’ Ela concordou comigo e continuou ‘Nosso terceiro e único filho homem é o Jonathan. Ele é publicitário e também casou com uma advogada, Amy. Eles tem dois filhos, Boston de 10 anos e Byron, de 7, o nosso arteiro oficial. E nossa mais nova é Megan. Megan é médica obstetra e se casou com outro médico, mas pediatra, Jason. Eles tem um casal de gêmeos de 4 anos, Zachary e Kaley, os caçulas de toda a família’

‘Uau, são muitos mesmo’

‘Somos muito mais, tenho 4 irmãos e Liam tem mais 3, mas esses você pode conhecer em uma outra ocasião’ Ela riu.

Conversamos por toda a manhã e uma parte da tarde, transformando o Brunch em almoço. Quanto mais o tempo passava, mais a vontade eu me sentia perto dela. Combinamos que eu iria até Boston no próximo sábado, com Evie, e quando nos despedimos na porta do hotel onde ela estava hospedada ela pediu para me dar um abraço. Foi a primeira vez, desde a morte da minha avó Morgana, que senti uma parte do vazio deixado por ela ser preenchido. Era uma sensação muito boa.

Nova York

Agosto de 2001


Nosso primeiro ano em Nova York havia sido atribulado. Com aulas exaustivas tanto para Shannon e eu quanto para Evie, Dario e Georgia, não sobravam muitas horas de lazer para conhecer melhor a cidade. Conhecíamos o essencial, que se limitava a Manhattan e a área que rodeava o Central Park, mas com o fim do período obrigatório de moradia nos dormitórios das academias, tivemos a chance de percorrer todos os cantos da cidade em busca de um novo lugar para morar.

Nossa busca não foi fácil. Alojados provisoriamente no pequeno apartamento de Vivian, consultávamos todos os dias os classificados dos jornais e visitávamos inúmeros imóveis durante o mês de Julho, mas nada parecia ideal para abrigar cinco pessoas. Shannon e Dario já começavam a considerar alugar os dormitórios por mais um ano, quando Georgia encontrou uma luz no fim do túnel. Uma casa antiga de três andares no Brooklyn, com três quartos. No anuncio dizia que precisava de reforma, mas que a fachada estava em perfeitas condições.

Nossos amigos toparam o desafio de transformar aquele casarão da Família Addams, como Dario apelidou, em um lugar habitável e depois de um fim de semana inteiro de reforma, uma decisão de “pedra, papel e tesoura” onde ficou decidido que Evie e eu ocuparíamos o quarto do terceiro andar que tinha banheiro, Shannon iria dividir um quarto com Georgia e Dario ficaria um só para ele, ambos no segundo andar onde tinha mais um banheiro e muita bagunça para matar a saudade dos amigos, tínhamos uma nova casa para morar.

ºººººº

Setembro de 2001

O novo ano letivo já havia começado cercado de caos. Era uma terça-feira comum na Academia, mas as aulas foram interrompidas quando um estrondo assustador pode ser ouvido por quase toda Nova York. Saímos pra rua para procurar a fonte do barulho e vimos um avião se chocando com uma das torres do World Trade Center. O autor do estrondo ouvido foi outro avião, que se chocou com a outra torre.

Desde então a cidade vivia um momento critico, uma onde de caos e pânico se espalhava pelas ruas e todos viviam com medo. Todos tinham medo de andar de metro, visitar pontos turísticos e até mesmo shoppings, receando outro atentado. Eu não agüentava mais ficar preso dentro de casa e como era o fim de semana do aniversário de Georgia, combinamos de tirar da cabeça toda a tensão da semana e aproveitar o que prometia ser o ultimo sábado quente do ano.

‘Micah, que horas nós vamos voltar?’ Shannon apareceu na escada com o telefone na mão.

‘Não sei, Dario nem chegou ainda pra sairmos. Por quê?’

‘Minha mãe está surtando no telefone porque vamos passear na rua, quando tudo está um caos’ Shan fez uma careta e voltou a falar com a mãe no telefone, tentando acalmá-la.

‘Opa, opa, calma!’ A porta da sala abriu e Dario foi arrastado pra dentro por dois cachorros. Meu Pastor Alemão Han Solo e o Labrador de Evie, Thror ‘Vão, sumam! Estão livres!’

‘Por que você saiu com os dois ao mesmo tempo?’ Ri da careta cansada que ele fez, o rosto todo suado e vermelho.

‘Tente sair só com um e você vai se deparar com uma revolução canina!’

‘Vem Thor, vem Han, vamos pro quintal pra não bagunçar a sala que Georgia arrumou’

Ainda rindo dele, levei os cachorros pros fundos da casa antes que começassem a destruir os móveis. Apesar da lotação da casa, ninguém fez objeção quanto a trazermos os dois para Nova York e agora o nosso já pequeno quintal dos fundos estava menor ainda, ocupado por dois cachorros grandes e estabanados.

Quando voltei para a sala, Dario conversava com uma senhora de aparência gentil. Era até um pouco alta para a idade que aparentava, cabelos loiros e curtos e um sorriso tranqüilo. Ele fez sinal me chamando e me aproximei.

‘Micah, essa senhora veio procurar por você’ Dario falou quando parei ao seu lado ‘Vou deixar vocês a sós’

‘Vá se arrumar logo, as meninas já estão quase prontas’ Falei antes que ele sumisse pela escada e me virei para ela, indicando o sofá ‘Desculpe se não estou me lembrando da senhora. Já nos conhecemos antes?’

‘Não, ainda não tivemos o prazer de nos conhecermos’ Ela estendeu a mão para mim com um sorriso quase emocionado no rosto ‘Me chamo Norma Walker’

‘Muito prazer, Norma. Em que posso ajudar?’

‘Tenho um assunto delicado a tratar com você e não há uma forma mais suave para começar, então vou direto ao ponto. Eu sou sua avó’

Minha única reação foi encará-la sem dizer nada. Como ela era minha avó? Minha avó se chamava Morgana, não Norma, e havia falecido há quase 5 anos. Continuei a encarando sem dizer nada, até que me lembrei que minha mãe, quem quer que ela fosse, também tinha uma mãe.

‘Sou mãe da sua mãe, Emily’

‘É, recordo vagamente do nome dessa ai’ Cortei o que ela dizia ao ouvir “sua mãe Emily” ‘Mas minha mãe se chama Andrea’

‘Entendo sua revolta em relação a minha filha e antes que a transfira para mim, deixe-me contar o meu lado na historia. Emily saiu de casa assim que completou 18 anos, fugiu com um rapaz chamado Ryan. Ficamos sem noticias dela desde então, até que em 98 ela reapareceu em casa, precisando de dinheiro. Nos dois dias em que ficou na minha casa, contou que tivera dois filhos com Ryan e que os meninos haviam sido criados pela avó paterna, depois desapareceu outra vez sem dizer mais nada’ Ela fez uma pausa e seus olhos começaram a se encher de lagrimas, mas ela as segurou ‘Desde então minha família não teve mais paz, temos tentado encontrá-los de todas as formas possíveis, até contratamos um detetive particular. Já tínhamos seu nome, sabíamos que se formou em Durmstrang e que pretendia ser auror, até vimos uma foto sua na formatura, mas ninguém sabia onde estava morando. Até que essa semana, em uma foto do jornal sobre o atentado as torres gêmeas, vi uma foto sua e soube que estava mais perto do que imaginávamos. Você é igual ao seu avô quando tinha a sua idade, reconheceria até mesmo se não tivesse visto uma foto antes’ Continuei calado e ela emendou ‘Você tem uma família, Micah’

‘Eu tenho uma família, sempre tive’ Disse finalmente e ela assentiu.

‘Sei que isso é muita informação ao mesmo tempo, mas gostaríamos que, quando estiver pronto, venha conhecer sua outra família’

‘Desculpe, mas não posso resolver isso agora’ Levantei abruptamente do sofá e ela se assustou ‘Estávamos de saída, é aniversário da minha amiga e vamos comemorar’

‘Não precisa decidir nada agora, pense com calma depois’ Ela levantou do sofá também e deixou um cartão na mesa ‘Vou estar na cidade até terça, minha casa fica em Boston. Se quiser conversar, é só me ligar’

Com o mesmo sorriso gentil de quando chegou, Norma olhou para mim uma última vez e caminhou até a porta, saindo sem dizer mais nada. Não sei quanto tempo fiquei encarando a porta fechada, mas quando Evie me segurou pelo braço, já estavam todos prontos me esperando pra sair e querendo saber o que tinha acontecido. E eu não sabia nem como começar a explicar.

Nova York, Setembro de 2000

Vida de aspirante a auror não era fácil. E se você é um calouro da Academia de Aurores de Nova York, então sua vida é um inferno. Todo dia os veteranos fazem questão de lembrar que calouros não são nada e nos aterrorizam com profecias furadas de que só menos da metade daquela turma de perdedores ia se formar em três anos. Era um saco, claro, mas eu nunca reclamava. Agüentava as provocações e insultos sem revidar, pois dali a um ano seria a minha vez de infernizar a vida de alguém e eu faria isso com maestria.

O veterano que mais pegava no meu pé era um legitimo nova iorquino cheio de orgulhoso de sua cidade chamado Stevens. Ele não aceitou muito bem a minha afirmação de que a Califórnia era melhor que Nova York e desde então passou a me perseguir, tentando a todo custo me fazer desistir. Eu dividia o quarto com um garoto de Nova Jersey chamado Eric Chambers e se pegavam no meu pé por ser da Califórnia, Eric sofria o dobro de provocações graças à rixa que existia entre Nova York e Nova Jersey, a cidade vizinha.

Shannon também não estava se saindo muito bem no quesito provocação. Ela e a outra única garota estudando na Academia, Rachel Aldrin, dividiam um quarto e eram muito mais cobradas que qualquer um dos outros garotos. Elas mesmas se esforçavam mais que o normal para não darem motivo de implicâncias ou provocações, mas se ainda existia certa resistência dos calouros da nossa turma contra a presença delas, aquilo acabou no dia que tivemos a nossa primeira aula de luta trouxa.

‘Muito bem, perdedores, hoje vamos ver quem consegue derrubar um adversário sem usar a varinha’ o auror Cartwirght, nosso instrutor do dia, andava entre a turma enquanto falava ‘Vocês vão lutar com protetores hoje, porque não quero ver nenhuma mariquinha choramingar, mas essa moleza é só por hoje!’

‘Ah, assim é moleza, até uma garota luta’ Barnett falou rindo e alguns dos garotos o acompanharam.

‘Cadete Barnett, um passo a frente’ o auror ordenou e ele obedeceu, já pegando o equipamento ‘Cadete Austen, um passo a frente’

‘Isso vai ser divertido’ Barnett provocou, vendo Shannon se preparar para a luta com bastões de espuma.

Os dois se posicionaram já protegidos pelos coletes e capacetes também de espuma e ao sinal do auror, começaram a luta. Barnett começou avançando para cima de Shannon, que apenas recuava e desviava dos golpes dele, até que ele a desequilibrou e ela quase caiu. Barnett já estava rindo, cantando vitoria, quando Shannon ficou de pé outra vez e deu inicio a uma sucessão de golpes pra cima dele, conseguindo o derrubar em menos de um minuto. A turma inteira urrava, incentivando ela a bater mais. Shannon batia com o bastão no capacete dele com muita rapidez e Barnett já devia estar ficando tonto, porque ergueu as mãos, derrotado.

‘Da próxima vez que desafiar alguém para um duelo, certifique-se primeiro de que é você quem vai vencer a luta, e não a outra pessoa, otário’ ouvi Shannon falar com o bastão pressionado contra o peito dele e depois se afastou, voltando para a fila.

‘Girl Power, sister’ Rachel ergueu o punho e Shannon fez o mesmo, arrancando alguns risos na fila.

‘Muito bem, seus maricas. Se mais ninguém quiser ser humilhado pela Cadete Austen, é melhor começarem a se dividir em duplas e lutarem!’

A turma mais que depressa se dividiu em duplas e se equiparam com as espumas, enchendo a sala com o barulho dos bastões batendo com violência contra os coletes. Depois dessa surra, acho que Shannon e Rachel iam passar a serem mais respeitadas na Academia, do contrário, mais alguns cadetes seriam humilhados por duas garotas.

ººººº

Nossa primeira semana de aula na Julliard havia finalmente chegado ao fim e eu não poderia estar mais acabada. Todas as aulas da divisão de dança eram extremamente puxadas e os professores eram tão exigentes que me faziam sentir falta da professora Mesic. Apesar de ser uma sexta-feira e a maioria dos alunos estarem saindo do campus para ir para casa ou apenas passear, minha maior ambição era passar uma mistura que meu tio Heinrich havia me ensinado nas pernas, na expectativa de que a dor passasse.

‘O que tem nessa coisa?’ Georgia torceu o nariz da cama dela, me vendo sentada no chão massageando as pernas com uma pasta roxa ‘O cheiro é muito forte!’

‘Essência de Murtisco especial dos Stanislav’ respondi rindo, cheirando a pasta ‘Receita pessoal do meu tio curandeiro. É muito boa’

‘Não vai sair com o Micah hoje?’

‘Só se ele vier me carregar no colo, não consigo dar dois pas-’

Minha frase foi interrompida quando a porta do quarto abriu com violência e cinco pessoas encapuzadas entraram, nos agarrando pelos braços e pernas e cobrindo nossos rostos com capuzes. Começamos a gritar e nos debater, mas senti uma mão pressionado um pano contra o meu nariz e me senti tonta, sem forças pra continuar resistindo, então me deixei ser carregada por quem quer que estivesse me seqüestrando.

Já havia sido advertida por uma menina do segundo período que em Julliard também aconteciam trotes, então não me desesperei, pois sabia que devia ser isso. Georgia também havia parado de gritar, deviam tê-la dopado com o mesmo que eu, e depois de sentir que estava sendo carregada escada abaixo por muitos andares, fui largada sem muita delicadeza dentro de alguma coisa dura e apertada. Senti outro corpo, provavelmente Georgia, bater no meu, seguido de uma porta de fechando. Continuei sem me mexer, calada, então ouvi o ronco de um motor e senti que estávamos no movendo. Contorci-me no espaço apertado e consegui erguer as mãos amarradas até a cabeça, arrancando o capuz.

‘Não acredito que estamos trancadas no porta-malas de um carro’ falei bufando, arrancando o capuz de Georgia.

‘Ótimo, pra onde será que estão nos levando?’ ela resmungou também, olhando ao redor do porta-malas apertado.

A resposta veio no que pareceu uma eternidade depois. O carro parou depois de rodar por muito tempo e quando abriram o porta-malas, reconheci as veteranas que nos tiraram lá de dentro. Aquilo era mesmo um trote idiota. Vi que tinham mais quatro calouras amarradas já sendo guiadas por outras duas para dentro de um edifício velho e olhei rápido ao redor, mas não reconheci onde estava. Elas nos encapuzaram outra vez e subimos muitos lances de escadas naquele prédio abandonado, até que finalmente pararam e nos livramos das vendas.

‘Bem vindas a Hell Week’ uma das veteranas, Casey, falou animada ‘Esse é o prédio original da New York High School of Performing Arts, a antecessora da nossa amada Julliard’ e estendeu os braços, indicando a sala a nossa volta ‘Esse solo é sagrado e para sair daqui, vocês terão que encontrar o caminho mais rápido. A dupla que chegar primeiro a sala onde vamos aguardá-las, com as chaves da porta, está livre da Hell Week. As duplas perdedoras não serão poupadas. Boa sorte’

Casey e as outras veteranas começaram a rir e saíram da sala, nos deixando sozinhas. Georgia imediatamente agarrou meu braço e saiu me rebocando para fora da sala, nos separando das outras calouras. O prédio era mesmo imenso e completamente abandonado. Entramos e saímos de antigas salas de aula e cada uma delas tinha uma pista para encontrarmos as chaves, contando histórias da época que a escola funcionava. E reparei que era possível chegar até as chaves seguindo três caminhos diferentes, para que cada dupla ficasse com um e vencesse a que fosse mais rápida.

Vez ou outra ouvíamos gritos vindos de outros corredores do prédio e sabia que eram as outras meninas, se deparando com as armadilhas montadas pelas veteranas. Eu já estava coberta de tinta dos pés a cabeça e Georgia havia perdido um sapato quando pisou em uma espécie de cola preta e muito grudenta, mas não íamos desistir. Precisava me livrar dos trotes, não ia agüentar ser seqüestrada outras vezes ou ter que passar por algum tipo de humilhação publica no meio de Nova York.

‘Ok, primeiro andar e três portes’ Georgia parou no meio do corredor ‘Matadouro, Sala de Preparação e Estúdio. Qual você prefere?’

‘Matadouro é nosso’ outra dupla chegou correndo e passou a nossa frente ‘Parece mais perigoso, aposto que está aqui’

‘Sala de preparação, vamos logo’ falei revirando os olhos e abri a porta. Georgia me seguiu.

‘Quem diria... Achamos as chaves’ Georgia sorriu vitoriosa vendo um chaveiro pendurado no teto e em seguida as meninas que entraram no matadouro começaram a gritar ‘Vamos dar o fora daqui, meus pés estão imundos!’

Georgia juntou as mãos para que eu pudesse subir apoiada nelas e consegui alcançar as chaves. Abrimos a porta apressadas e as veteranas estavam jogando cartas quando entramos, mas levantaram comemorando quando nos viram. Três delas saíram para resgatar as outras duas duplas e voltamos para Julliard, dessa vez sem estarmos trancadas no porta-malas. Talvez fossemos ser um pouco odiadas pelas outras calouras, mas quem se importa? Estávamos livres da Hell Week. Ah, como a vida justa...

Nova York, 1º de Setembro de 2000

‘Bom, acho que é aqui que nos separamos’ Falei respirando fundo, diante do imponente Rose Building, minha nova morada durante um ano.

‘Se você precisar de alguma coisa, qualquer coisa, não hesite em me chamar’

‘Vou ficar bem’ Sorri de leve e ele relaxou um pouco. Sabia o quanto tinha o deixado aflito nos últimos dias e agora fazia de tudo para não preocupá-lo ‘Dario e Georgia estão aqui, não vou estar sozinha’

‘A gente se vê sexta-feira’ Micah acenou para os dois mais atrás de mim e me beijou ‘Boa sorte’

‘Pra vocês também’

Ele sorriu uma última vez e desaparatou, me deixando sozinha pela primeira vez em semanas. Respirei fundo mais uma vez e caminhei até meu primo e Georgia, e entramos os três juntos no edifício. Os 12 últimos andares do Rose Building abrigavam os dormitórios da Escola Juilliard e quando chegamos ao primeiro dos 12 andares, encontramos o restante da turma de calouros já reunida, fomos os últimos a chegar. O primeiro andar parecia ser uma área comum a todos os alunos, com televisão, cozinha, lavanderia e algumas máquinas com lanches rápidos.

‘Bom dia, calouros’ Uma voz animada chamou a atenção de todos ‘Meu nome é Stacy Freeman, sou a monitora responsável pelo tour desse ano. Como todos já perceberam, essa é a nossa sala comunal, onde os alunos costumam relaxar nos finais de semana ou depois de um dia exaustivo de aulas. Agora me acompanhem, vou mostrar os demais andares antes da aula inaugural’

A monitora chamada Stacy começou a andar pelos corredores, usando as escadas no lugar dos elevadores para guiar a nova turma de alunos. Enquanto passávamos pelo restante dos 12 andares, ela apresentava alguns dos veteranos que encontrava pelos corredores e explicava o que íamos encontrar em cada um dos andares, além dos dormitórios. A turma olhava a tudo com fascinação. Sonhava com o dia que entraria para a mesma escola que minha mãe se formou desde que era criança, mas agora que o dia havia chegado, parecia ser um sonho do qual eu despertaria muito em breve.

‘Agora que já apresentei todos os nossos andares, vocês terão meia hora para conferirem se todos os seus pertences já estão nos dormitórios que estão marcados em suas cartas e depois sigam para o nosso auditório, que fica localizado no primeiro andar do edifício’ Ela olhou para os calouros sorrindo animada ‘Bem vindos a Juilliard!’

‘Vou checar com quem estou dividindo o quarto, encontro vocês daqui a pouco’ Dario se despediu e desceu as escadas apressado.

‘Bom, segundo a carta que recebi, meu dormitório fica no andar debaixo’ Falei enquanto consultava o papel em minha mão.

‘O meu também, mas vou tirar uma dúvida com aquela menina, encontro você depois’ Georgia também se despediu e sumiu entre os alunos que procuravam seus quartos.

Acabei descendo sozinha até o andar onde estava localizado meu quarto. Era a segunda porta do longo corredor, logo depois de passar por uma pequena sala com sofás, uma televisão e dois computadores. A porta ainda estava fechada, o que indicava que minha nova companheira de quarto ainda não havia encontrado o local. O quarto era todo branco e tinha uma cama de cada lado, com um criado-mudo para cada uma delas. Tinha uma mesa de estudos com algumas prateleiras vazias e nenhum tipo de decoração, que deveria ficar a critério dos novos moradores. Escolhi logo a cama mais afastada da porta e sentei devagar, alisando o colchão enquanto observava cada canto do novo quarto.

‘Ei, companheira de quarto!’ Ouvi uma batida na porta e quando olhei, Georgia estava parada nela ‘Meio pálido esse quarto, mas acho que só precisaremos de um dia para deixá-lo com a nossa casa’

‘O que está fazendo aqui?’ Perguntei espantada.

‘Esse não é o quarto 2102?’ Georgia consultou o papel em sua mão ‘Diz aqui que é o meu quarto’

‘Dançarinos podem dividir o quarto com músicos e atores’ Repeti o que havia lido no folheto explicativo, incrédula.

‘Acho que o destino quer que a gente mantenha a amizade’ Georgia sorriu animada, ocupando a cama que havia sobrado.

‘Não precisa se preocupar, Georgia’ Acabei rindo, ainda sem acreditar que passaria um ano dormindo no mesmo quarto que ela ‘Não estava planejando fugir de você’

‘Ei, olhe só isso, caíram no mesmo quarto’ Dario entrou no quarto ao lado de um garoto de cabelos ruivos e espetados ‘Esse é o Ephram, ele é músico e está dividindo o quarto comigo’ O garoto entrou no quarto também, sorrindo um pouco sem jeito ‘Essas são Georgia e Evie, minha prima’

‘Muito prazer, Ephram’ Georgia levantou animada e apertou a mão do menino com entusiasmo.

‘Ainda é difícil de acreditar que estamos aqui’ Dario falou sorrindo eufórico.

Caminhei até a janela e pela primeira vez pude contemplar a vista que tinha da cidade de Nova York do alto do Rose Building. Dario tinha razão: era difícil de acreditar, mas estávamos mesmo em Juilliard.

ººººº

‘Ah, finalmente!’

Shannon exclamou impaciente quando aparatei na sua frente, depois de deixar Evie em frente ao prédio da Juilliard. Estávamos no bairro do Soho, diante de um prédio de aparência muito antiga. Ele tinha 4 andares e ocupava quase meio quarteirão. Era o prédio da Academia de Aurores de Nova York. Consultei o relógio e vi que já estávamos quase atrasados para a apresentação dos calouros.

‘Melhor entrarmos, não quero começar já me atrasando’ Shannon abriu a porta e o silencio da rua foi tomado por um falatório sem fim que vinha lá de dentro ‘E pelo visto, somos os últimos...’

Shannon tinha razão. Quando passamos pelo hall de entrada da Academia, todos os olhares se voltaram para nós dois, pois éramos os únicos calouros que faltavam na fila formada no centro do enorme hall. Apressamos-nos em nos juntarmos ao restante da turma e não pude deixar de notar que Shannon atraia muito mais olhares, não só da nossa turma como também de muitos veteranos. Ao me posicionar em meu lugar na fila, notei que em todo o hall, só tinha ela e mais uma garota, que também atraia muitos olhares e cochichos.

‘Atenção!’ Um garoto corpulento que devia ter seus 20 anos gritou enérgico ‘Todos em forma!’

Nossa turma continuou parada, sem saber o que fazer, mas ao ver todos os outros alunos da Academia ficarem eretos em posição militar logo percebemos que deveríamos fazer o mesmo. Um homem com uma roupa que mais parecia uma farda veio caminhando entre a fila formada por veteranos e parou na nossa frente.

‘Descansar’ Com uma única palavra sua, os demais alunos trocaram de posição para algo que deveria ser mais relaxado, mas no meu ponto de vista estava longe disso ‘Bem vindos a Academia de Aurores de Nova York, cadetes. Hoje é o começo dos três mais difíceis e sacrificantes anos de suas vidas, mas que valerão à pena. Nossa Academia é conhecida por ter o treinamento mais intenso, com métodos radicais que nos diferem das demais e nos destacam como a Academia que forma os Aurores mais astutos e bem preparados para enfrentar qualquer tipo de situação, seja ela trouxa ou bruxa’ Ele fez uma breve pausa e alguns veteranos rapidamente distribuíram um pequeno livro dentro de uma capa plástica, com uma corda para pendurarmos no pescoço ‘Durante seu primeiro ano aqui, vocês deverão andar com o manual da nossa Academia pendurado no pescoço. É o que irá diferenciá-los dos demais cadetes. O livro deve ser lido e decorado, perguntas sobre ele serão feitas a qualquer minuto e se não as responderem corretamente, serão punidos. Vocês irão encontrar tudo que precisam saber sobre a nossa instituição nele. Como nossos cadetes veteranos já perceberam, pela primeira vez, esse ano contamos com a presença de duas mulheres. Nossa Academia tem a tradição de formar apenas homens por ser a mais puxada, mas as cadetes Austen e Aldrin são bem vindas. Tanto o dormitório quanto o banheiro que será usado por ambas não podem ser abertos por magia, apenas por uma chave’

‘É melhor trancar mesmo’ Ouvi um garoto cochichar atrás de mim e outro rir.

‘Tem algo a dizer, cadete Barnett?’ O veterano que abriu passagem para o comandante gritou no ouvido dele.

‘Não’ Mesmo sem olhar para trás, podia sentir o garoto tremer. Não pude evitar um sorriso debochado.

‘Quando um superior lhe fizer uma pergunta, cadete cabeçudo, a resposta é “senhor, não senhor” e “senhor, sim senhor”!’ Ele gritou outra vez e ninguém sequer se movia na fila ‘FUI CLARO?’

‘Senhor, sim senhor!’ O garoto de sobrenome Barnett respondeu com a voz um pouco falha.

‘Assim está melhor’ O veterano se afastou do nosso grupo e voltou para o lado do comandante ‘Porque o cadete homem que for pego dentro do banheiro feminino será severamente punido e poderá ser expulso da Academia, se tiver uma ficha de punições acima de 5 deméritos’

‘Minha parte aqui terminou. Agora nossos veteranos cuidarão de vocês’ O comandante analisou calmamente cada uma das pessoas naquela fila com uma expressão intimidadora ‘Bem vindos a Academia de Aurores’

Os veteranos se colocaram em posição de sentido outra vez para deixá-lo passar e assim que o homem saiu do hall, todos avançaram para cima da gente, gritando ordens para fazermos flexões ou mesmo insultos aleatórios, que deveríamos ouvir calados e sem revidar, afinal, ninguém ia querer comprar briga com um veterano logo no primeiro dia. Sabia que não seria nada fácil sobreviver naquele lugar, mas nada me faria desistir. Meu sonho estava começando e por mais difícil que fosse conquistá-lo, eu ia conseguir.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009 11:55 Postado por Micah Sanders Wade 0 comentários
Nossa viagem à Nova York foi abruptamente interrompida com a morte do bebê. Evie ficou dois dias no hospital, em observação, e não sai do seu lado um segundo sequer. Não queria ir a lugar nenhum, não queria estar longe caso ela precisasse de mim, embora tenha passado todo o tempo calada, encolhida na cama. Tentávamos conversar com ela, mas era em vão. Ela não conversava, mas reagia quando pensava que sairia de perto. Procurava minha mão parecendo assustada e a apertava com força contra o peito, enquanto chorava.

Voltamos para a Bulgária assim que ela recebeu alta. E no momento em que pisamos de volta a mansão do avô dela, Evie se trancou no quarto. Passava o dia na cama, de pijama. Eu nunca me senti tão inútil, pois não sabia o que fazer. Cheguei a pensar que teria que hospitaliza-la outra vez. Ela não falava, não comia e nem bebia nada. Ela simplesmente não se movia. Heinrich, seu tio que era médico, definiu seu estado como catatônico, mas eu não permitia que ele falasse qualquer coisa do tipo perto ela. Eu estava com medo que isso piorasse as coisas. Eu me esforçava para tentar ajuda-la, mas estava sempre preocupado de falar algo que a aborrecesse mais, então meus esforços não eram de muita ajuda. Seus olhos estavam apagados e sua expressão era sempre sem vida. Evie estava... vazia.

O corpo do bebê foi cremado, mas Evie não tinha forças para me acompanhar a algum lugar onde pudéssemos soltar as cinzas e Tessa me aconselhou a esperar até que ela estivesse melhor. Dê tempo a ela, era o que ela dizia. Dar tempo a ela era tudo que eu podia fazer, não havia mais nada que estivesse ao meu alcance. As meninas apareciam constantemente para visitá-la e Evie nunca se recusou a recebê-las, mas quando iam embora os relatos da visita eram sempre os mesmos.

‘Ela parecia distante, como sempre’ Milla comentou enquanto as acompanhava até a sala. Evie adormecera quando elas ainda estavam no quarto ‘Não acho que tenha ouvido alguma coisa do que dissemos’

‘Já tentou fazê-la sair um pouco de dentro de casa?’ Vina perguntou ‘Não está fazendo bem a ela ficar tanto tempo trancada naquele quarto’

‘Já tentei de tudo, mas ela não reage a nada’ Admiti derrotado ‘Já cogitei até arrancá-la de lá a força, mas não tenho coragem. Eu não sei mais o que fazer’

‘A gente sente muito, Micah’ Annia apertou meu ombro ‘Queríamos poder fazer alguma coisa para ajudar, mas ela não nos dá nenhuma opção’

‘Vocês virem aqui já é de grande ajuda, assim ao menos ela não se sente sozinha, mesmo que não reaja a nada’ Agradeci e paramos perto da porta.

‘Todo mundo já passou aqui?’ Milla perguntou ‘Ela já viu todos os amigos?’

‘Todos já vieram aqui. Chris e Shannon vêm quase todos os dias também, como vocês, Georgia veio algumas vezes, mas todos já vieram pelo menos uma vez nos visitar’

‘Bom, nós usamos todas as armas que tínhamos’ Nina falou me abraçando para se despedir ‘Insista outra vez, talvez ela demonstre alguma reação’

‘Obrigado. Está acabando comigo vê-la desse jeito’

‘Acaba com a gente também, mas ela vai reagir’ Vina falou confiante e as outras concordaram.

As meninas se despediram de mim e voltei para a sala sozinho. Aquela casa era imensa e naquele momento, todos os seus hóspedes e habitantes estavam na rua, o que deixava tudo silencioso demais. Já havia me acostumado com a família barulhenta dela e não gostava mais daquela calmaria, me dava tempo para pensar. Pensar era algo que não me agradava muito nos últimos dias. Fui até o quarto automaticamente conferir se Evie ainda estava dormindo, não gostava de deixá-la sozinha quando estava acordada. Fechei a cortina para a claridade não acorda-la e voltei para o corredor sem fazer barulho. Sabia que na maioria das vezes ela passava a madrugada acordada e quando dormia, tinha pesadelos e não conseguia descansar, então as raras vezes em que ela dormia durante o dia não deixava que nada nem ninguém atrapalhasse isso.

Não voltei ao primeiro andar, entrei na sala de TV e apoiei as mãos na bancada da varanda, encarando o jardim. Thor parecia sentir o que estava acontecendo, pois não o via mais saltar pelo gramado como um canguru. Ele agora passava o dia inteiro debaixo da janela do quarto de Evie, como um verdadeiro cão de guarda. Quando a ouvia chorar, chorava junto. Ele me lembrou meu cachorro, quando minha avó morreu. Han passou todo o velório sentado ao lado do caixão e não teve ninguém que conseguisse tira-lo de lá. Eu não fui ao enterro, mas me contaram que ele seguiu o cortejo ao lado dele e passou a noite no cemitério, só voltou para casa no dia seguinte pela manhã. Pensar em deixar Thor aqui quando nos mudássemos para Nova York era horrível, mas não permitiam cachorros no alojamento da Academia de Aurores e muito menos em Juilliard.

‘Mudar para Nova York’ Falei em voz alta, para mim mesmo ‘Será que ela ainda vai querer estudar lá?’

‘Claro que vai’ Ouvi a voz de Andrei e me assustei. Pensei que estava sozinho na casa ‘Assim que ela colocar a cabeça no lugar, vai entender que precisa seguir com a vida’

‘O semestre começa daqui a uma semana, não temos muito tempo. Não vou conseguir ir para Nova York e deixa-la aqui, isso está fora de cogitação’ Falei já decidido e ele parou do meu lado na varanda.

‘Quando a mãe dela morreu, nunca odiei tanto a superficialidade das pessoas’ Ele deu um longo suspiro antes de continuar, encarando um ponto fixo no jardim ‘Não há palavras. Você não sabe onde encontrar força, mas acaba achando’ Ele desviou os olhos do jardim e me encarou ‘Podem ter outro filho. Foi um acidente, uma tragédia, algo imprevisível’

‘Tudo foi um acidente’

‘Não, não foi. Vocês se amam, qualquer um vê isso’

‘Não sei se ela vai querer ter outro filho comigo’

‘Claro que vai querer. Apenas esperem o tempo certo, vocês ainda são jovens demais’

Ficamos em silencio por um longo tempo, até que Dario e Afonso aparataram no jardim carregando um Filipe quase desacordado nos braços, enquanto Mario e Diego, com seus recém-completados 16 anos e licença para aparatar, surgiam logo depois rindo como duas hienas. Andrei resmungou algo que não entendi e desceu ao encontro deles. Sacudi a cabeça, rindo. Eles tinham dado um porre em Filipe por ter sobrevivido às repúblicas de Durmstrang e se tornado veterano. Uma tradição iniciado por Andrei II e Pillar, que segundo Evie, deram um porre poético nela e em Max. Ela alega lembrar apenas de flashes confusos daquela noite e vomitar nos pés da avó. Afastei aquela imagem derrotada da cabeça e voltei ao quarto. Evie já estava acordada e parei ao lado da cama, sentando no chão para ficar na altura dela. Ficamos nos encarando em silencio, no escuro do quarto, e ela tentava sorrir um pouco, mas era nítido que o esforço era grande demais mesmo para um gesto tão simples. Beijei sua mão e a segurei com as duas mãos.

‘Você precisa sair dessa cama, meu amor’ Reuni coragem para tentar mais uma vez faze-la reagir e ela não desviou os olhos de mim ‘Está acabando comigo ver você assim. Não sei o que devo dizer. Não sei o que devo fazer. Foi um acidente’ Comecei a falar e foi quase impossível impedir que algumas lágrimas escorressem pelo meu rosto ao ver que ela começava a chorar. As palavras saiam com dificuldade ‘Você não fez nada errado. Nós não fizemos nada errado. Simplesmente aconteceu. Eu te amo, quero passar o resto da minha vida com você. Mas temos que nos despedir do nosso filho agora. Tenho que ajuda-la a fazer isso e não sei como. Por favor, me ajude. Por favor’

Evie fechou os olhos por alguns segundos ainda chorando e apertou minha mão com toda força que tinha, fazendo que sim com a cabeça. Senti um alivio tão grande que, pela primeira vez em muitos dias, o sorriso que se abriu em meu rosto era sincero.

***

Chegamos a Madrid através de uma chave de portal na manha do dia 23 de Agosto. Madalena estava sozinha a nossa espera no jardim de sua casa, seus três filhos estavam aproveitando os últimos dias de férias na Bulgária com o avô. Era melhor assim, quanto menos platéia, menos doloroso seria. Evie estava melhor, na medida do possível. Não passava mais o dia inteiro dentro do quarto e concordava em me acompanhar para caminhadas pelo jardim da casa. Quando as meninas voltaram para visitá-la na manha seguinte, conseguiu pela primeira vez interagir e participar da conversa, mesmo que mais ouvisse do que falasse. Milla foi embora com os braços carregados de sacolas, com as coisas que foram compradas em Nova York tanto para o bebê dela quanto para o nosso, Evie fez questão de que ela ficasse com tudo.

Deixamos as malas em casa e seguimos de carro até o centro de Madrid. Madalena estacionou o carro as margens do rio Manzanares e descemos, mas ela decidiu ficar e nos dar privacidade. Descemos até um pequeno píer bem próximo da margem e retirei uma urna muito pequena do bolso, estendendo-a com a palma da mão para ela. Ela me abraçou e balançou a cabeça. Entendi que devia ser eu a fazer isso e abri a urna, olhando para ela antes.

‘Quer dizer alguma coisa?’ Perguntei, esperando.

‘Só que... Vamos sentir sua falta’ Ela falou olhando para a urna em minha mão e me abraçou mais forte ‘Você nunca será esquecido’

Beijei sua testa e despejei as cinzas a favor do vento nas águas do rio. Elas se espalharam por toda parte e fechei a urna, guardando no bolso outra vez e envolvendo o outro braço livre ao redor dela. Ficamos naquela posição por algum tempo, sem conversar, apenas olhando para a água. Foi ela que quebrou o silencio.

‘Nós vamos superar isso, não é?’ Ela me perguntou, ainda olhando para o rio.

‘Não vai ser fácil, mas sim, nós vamos superar isso’ Fui sincero. Sabia que ia demorar, mas nós íamos conseguir ‘Vamos fazer tudo certo dessa vez, com as coisas na ordem correta’

‘O que quer dizer com isso?’ Ela desviou os olhos da água e me encarou, com o rosto ainda apoiado contra o meu peito.

‘Quero dizer que vamos para Nova York semana que vem, estudar e termos nossas profissões. Vamos seguir com a vida, como estávamos planejando, e depois que eu me formar, vou pedir você em casamento. Você vai aceitar, é claro’ Fiz uma pausa propositalmente convencida e ela riu. Sua risada me deu força pra continuar ‘Então vamos fazer uma festa de dar inveja a qualquer um e vamos morar na nossa própria casa, com aquele cachorro estabanado destruindo nossos móveis. E depois de todo esse processo, você vai engravidar outra vez e teremos um monte de filhos, talvez até três de uma vez só’

‘Está louco?’ Ela riu outra vez. Era tão bom ouvir o som de sua risada de novo ‘Trigêmeos? Acha que vamos dar conta de três bebês de uma só vez?’

‘Eles vão nos enlouquecer, sem dúvida. Vão chorar a noite toda, babar tudo e arrancar os pêlos do Thor, mas nós vamos dar conta’ Abaixei a cabeça para encara-la e segurei seu queixo ‘Vamos dar conta porque nos amamos e está mais do que provado que ele ajuda a superar todas as dificuldades’

‘É, tem razão’ Ela deu um sorriso ainda magoado, mas lindo, e me beijou ‘Ele supera tudo’

Apertei-a mais contra meu corpo e ela deitou a cabeça em meu ombro, suspirando pesado. O caminho para superar tudo aquilo seria longo e difícil, mas íamos passar por ele juntos e no fim, íamos ser muito felizes.